sábado, 21 de novembro de 2009

Um Luto Em Observação

[Esse texto está sendo repostado. Na sua primeira postagem o seu título era "C.S.Lewis e o Seu Problema com o Sofrimento". Resolvi dar um novo título e publicar o texto mais uma vez por causa da morte do Flávio Henrique. Que possamos, nós - os vivos, pensar na morte dele, nas nossas próprias vidas diante de Deus e encararmos todo o sofrimento como Lewis encarou; e irmos além disso, olhando firmemente para Jesus! Amém.]

O texto abaixo são várias partes do diário de Lewis (1898-1963) onde ele registrou, aos 62 anos de idade, os seus pensamentos e sentimentos sobre a dor de viver em luto por causa da morte de sua amada esposa Helen Joy Gresham, a quem ele se refere como "H". Um detalhe importante é que 20 anos antes desse fato, o maior apologeta cristão do século 20 havia escrito uma de suas obras-primas,"O Problema do Sofrimento", tratando sobre a existência de um Deus bondoso-onisciente-onipotente e de um mundo caótico e surdo a voz desse Deus. Aqui, porém, Lewis não escreve sobre o sofrimento como uma obra teológica e filosófica, mas o enfrenta perto de mais, com seus medos, fortes lembranças, suas dúvidas e solidão, com a sua fé aparentemente abalada. Há momentos que ele mais se parece com um filósofo ateu existencialista do que com o famoso professor de literatura medieval de Oxford e teólogo anglicano. Talvez acharemos estranho estas suas palavras, mas, respeitando as devidas proporções, em alguns aspectos este texto se parece e muito com alguns dos salmos das Escrituras.


"Ninguém me disse que o luto se parecia tanto com o medo... E ninguém nunca me falou sobre a preguiça do luto... Onde está Deus? Esse é um dos sintomas mais inquietantes. Quando você está feliz, muito feliz, não faz nenhuma idéia de vir a necessitar dEle, tão feliz, que se vê tentado a sentir suas reivindicações como uma interrupção; se se lembrar e voltar a Ele com gratidão e louvor você será - ou assim parece - recebido de braços abertos. Mas, volte-se para Ele, quando estiver em grande necessidade, quando toda outra forma de amparo for inútil, e o que você encontrará? Uma porta fechada na sua cara, ao som do ferrolho sendo passado duas vezes do lado de dentro. Depois disso, silêncio. Bem que você poderia dar as costas e ir embora. Quanto mais espera, mais enfático o silêncio se torna. Não há luzes nas janelas. Talvez seja uma casa vazia. Será que, algum dia, chegou a ser habitada? Assim pareceu, certa vez. E essa semelhança era tão forte quanto agora. O que isso pode significar? Porque em tempos prósperos Ele mais parece um comandante e em tempos conturbados Sua ajuda é tão ausente?

Tentei expor alguns desses pensamentos a C.{um amigo de Lewis} nesta tarde. Ele me lembrou que o mesmo parece ter acontecido com Cristo: "Porque me abandonaste?". Eu sei. Mas isso torna as coisas mais fáceis de serem entendidas? Não que eu esteja (suponho) correndo o risco de deixar de acreditar em Deus. O perigo real é o de vir a acreditar em coisas tão horríveis sobre Ele. A conclusão a que eu tenho horror de chegar não é "então, apesar de tudo, não existe Deus nenhum", mas "então, é assim que Deus é realmente. Não se iluda"... Evidentemente, é bem fácil afirmar que Deus parece ausente em nossas maiores necessidades, porque Ele está ausente - não-existente. No entanto porque Ele parece tão presente quando, para dizer com franqueza, não solicitamos Sua presença?

...Depois da morte de um amigo, anos atrás, durante algum tempo tive a mais vívida sensação de certeza da continuidade de sua vida; até mesmo do enaltecimento de sua vida. Tenho rogado que me seja dada até mesmo uma centésima parte da mesma certeza a respeito de H. Não há resposta alguma. Só a porta fechada, a cortina de ferro, o vácuo, o nada. "Pois todo o que pede..." - não recebe. Fui um louco em pedir. Por ora, mesmo que essa segurança sobreviesse, eu não lhe deveria dar crédito, antes deveria julgá-la uma auto-hipnose motivada por minhas próprias orações...

E essa separação {ele se refere a morte}, suponho está à espera de todos. Tenho pensado em H. e em mim mesmo e em como fomos injustamente separados um do outro. Presumo que todos os apaixonados o são... então, que fim concebível poderia haver em separar os antigos? Será que Deus é um palhaço, que de súbito lhe retira a tigela de sopa a fim de, no momento seguinte, substituí-la por outra com a mesma sopa? Nem a natureza parece semelhante palhaço. Ela jamais toca duas vezes a mesma música exatamente igual... Ó, Deus, Deus porque tiveste tanto trabalho de obrigar esta criatura a sair de sua concha se ela agora está condenada a se arrastar de volta - a ser novamente levada para lá?...

Se a bondade de Deus não é coerente com o ato de nos ferir, então, ou Deus não é bom, ou não há Deus algum: pois na única vida que conhecemos Ele nos fere de um modo tal, além de nossos piores pavores, acima de tudo o que podemos imaginar. Se essa bondade for condizente com o ato de nos ferir, então Ele pode muito bem fazer isso depois da morte de maneira tão intolerável quanto antes dela. Às vezes é difícil não dizer: "Deus, perdoe a Deus". Às vezes, é difícil dizer tanto; mas, se nossa fé for verdadeira, ele não fez isso. Ele crucificou-se...

Mais cedo ou mais tarde, devo encarar a questão de frente. Que razão temos nós, com exceção de nossos próprios desejos desesperados, de acreditar que Deus seja "bom" (de qualquer ângulo por nós estabelecido)? Todas as evidências prima facie (à primeira vista) não sugeririam exatamente o contrário? O que temos para contrapor a elas? Contrapomos Cristo a elas; mas como, se ele foi mal compreendido? Suas últimas palavras podem ter um sentido perfeitamente claro. Ele descobriu que o Ser que ele chamava Pai era horrivelmente, infinitamente distinto do que Ele havia suposto. A armadilha, por tanto tempo preparada, de maneira tão meticulosa e com iscas tão sutis, fora por fim armada sobre a cruz. A artimanha desprezível triunfara...

Por que ocupo minha mente com tamanhas imundícies e disparates? Será que tenho esperanças de que, se o sentimento se disfarçar de pensamento, sentirei menos? Não seriam todos estes apontamentos agonias mentais insensatas de um homem que não aceita o fato de não haver nada que possamos fazer com o sofrimento, exceto padecê-lo? Quem ainda crê que haja algum expediente (ah, se esse homem pudesse encontrá-lo...) capaz de fazer a dor não ser dor? De fato, não importa se você agarra os braços da cadeira do dentista nem se suas mãos repousam no colo. A broca continua perfurando...

Bem, faça sua escolha. As torturas ocorrem. Se elas são desnecessárias, então não há Deus nenhum, tampouco um Deus mau. Se há um Deus bom, então essas torturas são necessárias. Pois nenhum Ser que fosse bom, mesmo de maneira comedida, provavelmente seria capaz de as infrigir ou de as permitir caso elas não fossem necessárias. Seja o que for, não há como escapar. O que as pessoas querem dizer quando afirmam: "Não tenho medo de Deus porque sei que Ele é bom."? Será que nunca foram ao dentista?...

Aos poucos passei a sentir que a porta não está mais fechada e aferrolhada. Será que foi minha necessidade frenética que a fechou na minha cara? Quando nada há em sua alma exceto um grito de socorro talvez seja o exato momento em que Deus não o pode atender: você é como o homem que se afoga e que não pode ser ajudado por tanto se debater. É possível que seus gritos repetidos o deixem surdo à voz que você esperava ouvir. Entretanto " '...batam, e a porta lhes será aberta' ". Até que ponto "bater" significa esmurrar e chutar a porta como um maníaco?...

Revendo o que escrevi, percebo que só há bem pouco tempo estive muito voltado para minhas lembranças de H. e para como elas poderiam tornar-se falsas. Por alguma razão - o bom-senso misericordioso de Deus é o único em que posso pensar - deixei de aborrecer-me com isso...Deus certamente não estava fazendo uma experiência com a minha fé nem com meu amor para provar sua qualidade. Ele já os conhecia muito bem. Eu é que não. Nesse julgamento, ele nos faz ocupar o banco dos réus, o banco das testemunhas e o assento do juiz de uma só vez. Ele sempre soube que meu templo era um castelo de cartas. A única forma de fazer-me compreender o fato foi colocá-lo abaixo.

...No entanto há os dois enormes ganhos - agora, eu mesmo sei o bastante para chamá-los de "duradouros". Voltada para Deus, minha mente não encontra mais a porta fechada; voltada para H., não encontra mais aquele vácuo - tampouco aquela confusão acerca da imagem mental que tenho dela. Meus rabiscos mostram algo do processo, mas não tanto quanto eu esperava. Talvez ambas as mudanças não fossem, de fato, passíveis de observação. Não houve nenhuma transição súbita, surpreendente e de caráter emocional. Como o aquecimento de um cômodo ou o raiar do dia. Quando você se dá conta deles pela primeira vez, eles já estão em andamento há algum tempo..."

4 comentários:

Roberto Vargas Jr. disse...

Olá, meu caro Danilo.

Sinto muito pelo luto que, se bem entendi, vocês estão passando.

Este livro é muito bom. Além dos livros que você sugere, interessante é assistir o filme Shadowlands, que conta a história do envolvimento de Lewis e Joy. Em fevereiro eu fiz uma sugestão de reflexão com os livros e o filme. Seria bom repetir a sugestão:
"O primeiro livro explica as preleções que aparecem no filme e o filme explica a razão do segundo livro.
"Apenas como incentivo, encerro esta sugestão com a bela e poética imagem do porvir evocada pela última fala do filme: 'A dor de agora é parte da felicidade futura. É o trato'".

Ainda quanto a uma reflexão sobre a morte, desculpe-me se já fiz a sugestão de leitura aqui (se o fiz, não lembro), mas escrevi uns textos que tratam da esperança cristã envolvida na "passagem do Jordão". Quem sabe possam ser confortantes: Um vôo para bem além do nada.

No amor do Senhor,
Roberto

Danilo Neves disse...

Olá, Roberto.

Irei atrás desse filme que eu não conhecia!

No "Vôo para bem além do nada[2]" o irmão disse: "Sim, o cristão compreende e passa por toda essa tristeza. Uma grande tristeza. Mas não maior que sua esperança."

"Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós." Rm 8.18

A nossa alegria plena é escatológica. A esperança é maior...

"E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram." Ap 21.4

Amém.

Graça e paz, irmão Roberto, em Jesus, o Filho de Deus.

Ricardo Mamedes disse...

Caro Danilo,

Ufa...! Quão doloroso é o lamento de C. S. Lewis nesse texto pinçado do livro. Eu realmente ainda não conhecia essa obra - mas quero adquiri-la.

Além de me emocionar, o texto, quase angustiante, de certa forma também me consolou. Teve a incrível capacidade de mostrar que as minhas fraquezas, muitas vezes intimamente consideradas por mim torpes, são também fraquezas de tantos outros, até mesmo do grande Lewis.

Embora já tendo lido tantos textos reformados sobre a existência do mal e do sofrimento humano - muitas vezes inexplicável, como a morte da minha mãe com câncer (uma crente fervorosa) - há momentos que temos que refrear a ira, a impotência, a dor, para não fazermos como C. S. Lewis (muito parecido com Jó em certo momento, guardadas as proporções) e "apelar" com Deus.

Todavia, sempre volto à razão e reconheço que os desígnios de Deus, os seus projetos para a criação, os seus pensamentos e as suas resoluções são "mais altos" do que o nosso pequeno intelecto pode apreender. Queremos, nas mais das vezes, aprisionar o Eterno, direcioná-Lo, quando tentamos entendê-lo na Sua plenitude. Ele é soberano, está acima das suas criaturas, logo, em toda e qualquer circunstância, temos de nos submeter.

E então, sempre me volto para Ele, o único que é Bendito, Exaltado e Santo.

Em Cristo, o Salvador!

Ricardo

Danilo Neves disse...

Por Lewis ser anglicano, irmão, há partes desse diário que não iremos concordar. Mas, o conteúdo é muito profundo. É um diálogo entre Lewis e Lewis e que as vezes sai dessa vertente e vai pra Lewis e Deus. Algumas pessoas dizem que ele "perdeu a fé" no final da sua vida. Por esse diário vemos claramente que não. Lewis sempre teve que lidar com a perda: de sua mãe, na guerra, de sua esposa...Ele conseguiu ver propósito no seu sofrimento, ele foi além de sua dor. Numa mistura real de fé e debate com Deus é que torna esse livro (A Anatomia de uma Dor) um livro ímpar e acredito que é importante o irmão tê-lo na sua biblioteca particular. De todas as suas partes, esta me chamou mais a atenção:

"Às vezes é difícil não dizer: "Deus, perdoe a Deus". Às vezes, é difícil dizer tanto; mas, se nossa fé for verdadeira, ele não fez isso. Ele crucificou-se..."

Um abç, irmão Ricardo.

Graça e paz, em Jesus, o Filho de Deus. Amém!