quarta-feira, 27 de maio de 2009

Paulo Era Tricotomista??

"O mesmo Deus da paz vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo" 1Ts 5.23 (Paulo, cf 1.1).

Esse assunto dá muito pano pra manga! Quando alguns jovens falam disso comigo, falam com muitas dúvidas. Espero contribuir com mais dúvidas neste post, kkkkk...

Toda a questão gira entorno da seguinte pergunta: o homem, a sua natureza, é constituído de quê? Corpo e (alma = espírito) ou corpo, alma e espírito?

Antes, é bom dizer, sem ser muito simplista, que essa pergunta também foi feita fora do ambiente teológico cristão. Filósofos, especialmente os gregos (particularmente na concepção de Platão), imaginavam que o mundo material não havia sido criado por Deus e que este mundo estava em oposição a Ele. Daí era necessário um "poder mediador" que pudesse unir ou restabelecer a comunhão entre o mundo material e Deus, chamado de "alma universal". O conceito do homem no pensamento grego se moldou semelhantemente a essa idéia. O homem possui razão (nous), mas também um corpo material. E entre essas duas realidades deve haver necessariamente uma terceira que age como uma mediadora: a alma, que é capaz de dirigir o corpo em nome da razão. Tal pensamento era corrente no mundo romano e provavelmente influenciou vários teólogos cristãos, mesmo não havendo na Bíblia sustentação para isso.

Após o período apostólico, um dos mais antigos teólogos cristãos defensores da idéia tricotomista (tricha = "tríplice" ou "em três" + temnein = "cortar") foi Irineu. Ele ensinava que os incrédulos tinham apenas alma e corpo, enquanto os crentes possuiam, além dessas partes, o espírito, criado pelo Espírito Santo. Um outro teólogo geralmente associado à tricotomia é Apolinário de Laodicéia. A maioria dos intérpretes atribuiu a ele a idéia de que o homem consiste de corpo, alma e espírito ou mente (pneuma ou nous), e que o Logos ou a natureza divina de Cristo tomou o lugar do espírito humano na natureza humana que Cristo assumiu.

No século 19, a tricotomia ganhou mais força por ter sido ensinada por Franz Delitzsch com a publicação do livro System of Biblical Psychology na tentativa de construir uma pisicologia bíblica precisa, científica. Tentativa esta frustrada, segundo o próprio autor. No século 20 escritores como Watchman Nee, Charles R. Solomon e Bill Gothard também defendiam a interpretação tricotomista, além da famosa Bíblia com as referências de Scofield. Passaram-se os séculos e várias heresias surgiram (uma das mais famosas é a teoria do aniquilamento) e hoje várias igrejas foram influenciadas por tais escritores do passado e são favoráveis a idéia tricotomista. Você conhece alguma?

Frequentemente os tricotomistas apelam para 1Ts 5.23 como prova de sua opinião. Veremos!

Devemos observar, primeiramente, que essa passagem não é uma afirmação doutrinária, mas uma oração. Paulo roga que seus leitores tessalonicenses possam ser plenamente santificados e completamente preservados ou guardados por Deus até que Cristo venha outra vez. A plenitude da santificação, pela qual Paulo ora, é expressa no texto por duas palavras gregas. A primeira, holoteleis, é derivada de holos, que significa "todo", e de telos, que significa "fim" ou "alvo"; o termo, por sua vez, significa "todo de um tal modo que se alcance o alvo". A segunda palavra, holokleron, derivada de holos e kleros, porção ou parte, significa "completa em todas as suas partes". É interessante observar que na segunda metade da passagem, tanto o adjetivo holokleron como o verbo teretheie ("possa ser guardado ou preservado") estão no singular, indicando que a ênfase do texto está sobre a pessoa toda. Quando Paulo ora pelos tessalonicenses para que o espírito, alma e corpo de cada um deles possam ser guardados, ele obviamente não está tentando dividir o homem em três partes.

Num contexto mais amplo, as palavras hebraica e grega traduzidas como alma e espírito são empregadas muitas vezes sem distinção nas Escrituras.
1. O homem é descrito na Bíblia tanto como alguém que é corpo e alma como alguém que é corpo e espírito:
"Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma" (Mt 10.28); "Também a mulher, tanto a viúva como a virgem, cuida das coisas do Senhor, para ser santa, assim no corpo como no espírito" (1Co 7.34); "Assim como o corpo sem o espírito é morto, assim também a fé sem as obras é morta" (Tg 2.26).
2. A tristeza é atribuída tanto à alma como ao espírito:
"levantou-se Ana, e, com amargura de alma, orou ao SENHOR, e chorou abundatemente" (1Sm 1.10); "Porque o SENHOR te chamou como a mulher desamparada e de espírito abatido; como a mulher da mocidade, que fora repudiada, diz o teu Deus" (Is 54.6); "Agora, está angustiada a minha alma" (Jo 12.27); "Ditas estas coisas, angustiou-se Jesus em espírito" (Jo 13.21); "Enquanto Paulo os esperava em Atenas, o seu espírito se revoltava em face da idolatria dominante na cidade" (At 17.16); "porque este justo [Ló], pelo que via e ouvia quando habitava entre eles, atormentava a sua alma justa, cada dia, por causa das obras iníquas daqueles" (2Pe 2.8).
3. O louvor e o amor a Deus são atribuídos tanto à alma como ao espírito:
"A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador" (Lc 1.46,47); "Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força" (Mc 12.30).
4. A salvação é associada tanto à alma como ao espírito:
"acolhei, com mansidão, a palavra em vós implantada, a qual é poderosa para salvar a vossa alma" (Tg 1.21); "que o autor de tal infâmia seja... entregue a Satanás, para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo, no dia do Senhor" (1Co 5.3,5).
5. Morrer é descrito igualmente como a partida da alma ou do espírito:
"Ao sair-lhe a alma (porque morreu), deu-lhe o nome de Benoni" (Gn 35.18); "E, estendendo-se três vezes sobre o menino, clamou ao SENHOR e disse: Ó SENHOR, meu Deus, rogo-te que faças a alma deste menino tornar a entrar nele" (1Rs 17.21); "Não temais os que matam o corpo e não podem a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo" (Mt 10.28); "Nas tuas mãos, entrego o meu espírito" (Sl 31.5); "E Jesus, clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito" (Mt 27.50); "Voltou-se o espírito, ela imediatamente se levantou" (Lc 8.55); "Então, Jesus clamou em alta voz: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!" (Lc 23.46); "E apedrejavam Estevão, que invocava e dizia: Senhor Jesus, recebe o meu espírito!" (At 7.59).
6. Refere aos que já morreram como almas, algumas vezes, e como espíritos, outras vezes: Mt10. 28 (citado acima); "Quando ele abriu o quinto selo, vi debaixo do altar, as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam" (Ap 6.9); "e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados" (Hb 12.23); "Pois também Cristo morreu... para conduzir-vos a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito, no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais, noutro tempo, foram desobedientes quando a longanimidade de Deus aguardava nos dias de Noé" (1Pe 3.18-20).

Com exceção de 1Ts 5.23, em parte alguma o apóstolo empregou a linguagem tricotomista em relação a natureza humana e isso é evidente em passagens como Rm 8.10, 1Co 5.5; 7.34, 2Co 7.1, Ef 2.3, Cl 2.5.

1Ts 5.23 contém uma figura de linguagem, conhecida como perífrase, isto é, o uso de múltiplas palavras para firmar a idéia de totalidade, de algo completo, A mesma coisa encontramos em Mc 12.30 // Lc 10.27. "Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força". Aqui quatro elementos são mencionados e Jesus, certamente, não estava querendo ensinar que o homem é constituído de quatro partes, mas estava enfatizando a idéia de que o homem deve amar a Deus com todas as faculdades que Deus lhe deu.

Portanto, Paulo não foi tricotomista como alguns querem que ele seja. A distinção que os tricotomistas fazem entre alma e espírito é infundada.
Soli Deo gloria. Amém!

3 comentários:

Danilo Neves disse...

Me basei grandemente nas posições do teólogos: Anthony Hoekema, William Hendriksen, Simon Kistemaker e F.F. Bruce.

Obs quanto a Hb 4.12:

"Porque a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração"(autor desconhecido. TALVEZ foi Paulo;não vou discutir isso aqui).

Na língua grega há duas palavras para "dividir":
"merizo" - dividir em partes, como uma maçã, por exemplo: Mc 6.41; Rm 12.3
"diamerizo" - separar substãncias diferentes (ex. separar bolas brancas de bolas pretas): Mt 27. 35, Mc 15.24, Jo 19.24.

O verbo usado em Hb 4.12 é "merizo". Ele não ensina a divisão de coisas diferentes, mas denota a idéia de penetração da espada (a palavra de Deus, que aqui pode signifcar tanto a Escritura como Jesus Cristo) no âmago da matéria, da substância. Trata-se, portanto, da divisão de uma única substância e não de substâncias diferentes.

Igualmente, "juntas e medulas" não são substâncias diferentes, são ambas matérias. São apenas formas diferentes da mesma substância.

Essa passagem corresponde em vários aspectos a um texto de Paulo: "o Senhor... não somentre trará à plena luz as coisas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios do coração" (1Co 4.5).


Abraço a todos os leitores!

Soli Deo gloria. Amém!

Leonardo Bruno Galdino disse...

Danilo,

Muito bom o texto. Sei que você não quis ser tão exaustivo, mas acharia interessante se você fizesse uma defesa da "unidade psicossomática", que, aliás, é bem defendida e definida por Hoekema. Mas, se você preferiu preservar essa informação para outro post é perfeitamente compreensível, pois geralmente os leitores não gostam de ler textos muito longos na tela. Seu "auto-comentário" acima é bastante esclarecedor. Se você o pusesse no post também seria interessante.

Como você observou num comentário no meu blog, realmente eu ando meio em off. As razões eu escrevi lá. Mas, muito em breve estarei voltando à ativa (hehehe!).

Um grande abraço!

Danilo Neves disse...

Graça e paz, irmão Leonardo!

Pensou certo. Os jovens não gostam quando eu posto texto grandes (este aqui, pra você ter uma idéia, pra eles é muuuuito grande). Nunca na minha vida tive que aprender a ser tão sintético como agora, Leonardo, kkkk

Como o irmão disse bem, Hoekema falava mais em termos da integralidade do ser humano do que "em partes". Tanto é assim que ele não se sente confortável em dizer "dicotomia". Mas acho que só refutar a idéia dos tricotomistas já basta por aqui. Talvez voltarei nesse assunto futuramente, até pq eu tb sofro do mesmo problema do irmão as vezes: o da falta de "insight" rsrs

Obrigado por nos visitar e comentar novamente.

Grande abraço!