sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A Solidão de Deus

O título talvez não seja suficientemente claro para indicar o seu tema. Isso se deve, em parte, ao fato de que hoje em dia bem poucas pessoas estão acostumadas a meditar nas perfeições pessoais de Deus. Dos que lêem ocasionalmente a Bíblia, bem poucos sabem da grandeza do caráter divino, que inspira temor e concita à adoração. Que Deus é grande em sabedoria, maravilho em poder, não obstante, cheio de misericórdia, muitos acham que pertencem ao conhecimento comum; contudo, chegar-se a um conhecimento adequado do Seu Ser, da Sua natureza, dos Seus atributos, como estão revelados nas Escrituras Sagrada, é uma coisa que pouquíssimas pessoas tem alcançado nestes tempos degenerados. Deus é único na excelência do Seu Ser. “Ó Senhor, quem é como Tu entre os deuses? Quem é como Tu glorificado em santidade, terrível em louvores, operando maravilhas?”(Êxodo 15.11).

No princípio...Deus...”(Gênesis 1.1). Houve tempo se é que se lhe pode chamar “tempo”, em que Deus, na unidade de sua natureza, habitava só (embora subsistindo em três pessoas divinas). “No princípio...Deus...” Não existia o céu, onde agora se manifesta particularmente a Sua glória. Não existia a terra, que Lhe ocupasse a atenção. Não existiam os anjos, que Lhe entoassem louvores, nem o universo, para ser sustentado pela palavra do seu poder. Não havia nada, nem ninguém, senão Deus; e isso, não durante um dia, um ano ou uma época, mas “desde sempre”. Durante uma eternidade passada, Deus esteve só: completo, suficiente, satisfeito em Si mesmo, de nada necessitando. Se um universo, anjos, ou seres humanos Lhe fossem necessários de algum modo, teriam sido chamados à existência desde toda a eternidade. Ao serem criados, nada acrescentaram a Deus essencialmente. Ele não muda (Malaquias 3.6), pelo que, no essencial, a Sua glória não pode ser aumentada nem diminuída.

Deus não estava sob coação, nem obrigação, nem necessidade alguma de criar. Resolver faze-lo foi um ato puramente soberano de Sua parte, não produzido por nada alheia a si próprio; não determinado por nada, senão o Seu próprio beneplácito, já que Ele “faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade”(Efésios 1.11). O fato de criar foi simplesmente para a manifestação da Sua glória. Será que algum dos nossos leitores imagina que fomos além do que nos autorizam as Escrituras? Então, o nosso apelo será para a Lei e o Testemunho: “...levantai-vos, bendizei ao Senhor vosso Deus de eternidade em eternidade; ora bendigam o nome da tua glória, que está levantado sobre toda bênção e louvor”(Neemias 9.5). Deus não ganha nada, nem sequer com a nossa adoração. Ele não precisa dessa glória externa da Sua graça, procedente de Seus redimidos, porquanto é suficientemente glorioso em Si mesmo sem ela. Que foi que o moveu a predestinar Seus eleitos para o louvor da glória de Sua graça? Foi, como nos diz Efésios 1.5, “... o beneplácito de sua vontade”.Sabemos que o elevado terreno em que estamos pisando é novo e estranho para quase todos os nossos leitores; por essa razão faremos bem em andarmos devagar. Recorramos de novo às Escrituras. No final de Romanos capítulo 11, onde o apóstolo conclui sua longa argumentação sobre a salvação pela pura e soberana graça, pergunta ele: “Por que quem compreendeu o intento do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado? (vers. 35-35). A importância disto é que é impossível submeter o Todo-poderoso a quaisquer obrigações para com a criatura, Deus nada ganha da nossa parte. “Se fores justo, que lhe darás, ou que receberá da tua mão? A tua impiedade faria mal a outro tal como tu; e a tua justiça aproveitaria a um filho do homem”(Jó 35.7-8), mas certamente não pode afetar a Deus, que é bem-aventurado em Si mesmo. “...quando fizerdes tudo o que vos for mandado, dizei: somos servos inúteis, porque fizemos somente o que deveríamos fazer”(Lucas 17.10)—nossa obediência não dá nenhum proveito a Deus.

Ainda mais, vamos além: nosso Senhor Jesus Cristo não acrescentou nada a Deus em Seu Ser essencial e a glória essencial do Seu Ser, nem pelo que fez, nem pelo que sofreu. É certo, bendita e gloriosamente certo, que Ele nos manifestou a glória de Deus, porém nada acrescentou a Deus. Ele próprio o declara expressamente, e não há apelação quanto às Suas palavras: “...não tenho outro bem além de ti” (Salmo 16.2; na versão usada pelo autor, literalmente: “...a minha bondade não chega a ti”). Em toda a sua extensão, este é um Salmo sobre Cristo. A bondade e justiça de Cristo alcançaram os seu santos na terra (Salmo 16.3), mas Deus estava acima e além disso tudo, pois unicamente Deus é “o Bendito”(Marcos 14.61, no grego).

É absolutamente certo que Deus é honrado e desonrado pelos homens; não em Seu Ser essencial, mas em Seu caráter oficial. É igualmente certo que Deus tem sido “glorificado” pela criação, pela providência e pela redenção. Não contestamos isso, e não ousamos fazê-lo nem por um momento. Mas isso tudo tem a ver com a Sua glória declarativa e com o nosso reconhecimento dela. Todavia, se assim Lhe aprouvesse, Deus poderia ter continuado só, por toda a eternidade, sem dar a conhecer a Sua glória a qualquer criatura. Que o fizesse ou não, foi determinado unicamente por Sua própria vontade. Ele era perfeitamente bem-aventurado em Si mesmo antes de ter sido chamada à existência a primeira criatura. E, que são para Ele todas as Suas criaturas, mesmo agora? Deixemos outra vez que as Escrituras dêem a resposta: “Eis que as nações são consideradas por ele como a gota de um balde, e como o pó miúdo das balanças: eis que lança por aí as ilhas como a uma coisa pequeníssima. Nem todo o Líbano basta para o fogo, nem os seu animais bastam para holocaustos. Todas as nações são como nada perante ele; ele as considera menos do que nada e como uma coisa vã. A quem pois fareis semelhante a Deus: ou com que o comparareis?”(Isaías 40.15-18). Esse é o Deus das Escrituras; infelizmente Ele continua sendo o “Deus desconhecido”(Atos 17-23) para as multidões desatentas. “Ele é o que está assentado sobre o globo da terra, cujos moradores são para ele como gafanhotos; ele é quem estende os céus como cortina, e os desenrola como tenda neles habitar; o que faz voltar ao nada os príncipes e torna coisa vã os juízes da terra”(Isaías 40.22-23). Quão imensamente diferente é o Deus das Escrituras do Deus do púlpito atual!

O testemunho do Novo Testamento não tem nenhuma diferença do que vemos no Velho Testamento. Como poderia ser, uma vez que ambos tem o mesmo Autor! Ali também lemos: “A qual a seu tempo mostrará o bem-aventurado, o único poderoso Senhor, Rei dos Reis e Senhor dos senhores; aquele que tem, ele só, a imortalidade, e habita na luz inacessível; a quem nenhum dos homens viu nem pode ver: ao qual seja honra e poder sempiterno. Amém”(1 Timóteo 6.15-16). O Ser que aí é descrito deve ser reverenciado, cultuado, adorado. Ele é solitário em Sua majestade, único em Sua excelência, incomparável em Suas perfeições. Ele tudo sustenta, mas Ele mesmo é independente de tudo e de todos. Ele dá bens a todos, porém não é enriquecido por ninguém.

Tal Deus não pode ser encontrado mediante investigação; só pode ser conhecido conforme e quando revelado ao coração pelo Espírito Santo, por meio da Palavra. É verdade que a criação manifesta um Criador, e isso com tanta clareza, que os homens ficam “inescusáveis”(Romanos 1.20); contudo, ainda temos que dizer com Jó: “Eis que isto são apenas as orlas dos seus caminhos; e quão pouco é o que temos ouvido dele! Quem pois entenderia o trovão do seu poder?”(Jó 26.14). Cremos que o argumento baseado no desígnio, assim chamado, argumento apresentado por “apologetas” bem intencionados, tem causado mais dano do que benefício, pois tenta rebaixar o grande Deus ao nível do entendimento finito e, com isso, perde de vista a Sua singular excelência. Tem-se feito uma analogia com o selvagem que achou um relógio e que, depois de um demorado exame, inferiu a existência de um relojoeiro. Até aqui, tudo bem. Contudo, tentemos ir mais longe. Suponhamos que o selvagem procurasse formar uma concepção desse relojoeiro, de seus afetos pessoais, de suas maneiras, de sua disposição, conhecimento e caráter moral—de tudo aquilo que se juntaria para compor uma personalidade. Poderia ele chegar a imaginar ou pensar num homem real—o homem que fabricou o relógio—de modo que pudesse dizer: “Eu o conheço”? Fazer perguntas como essa parece fútil, porém estaria o eterno e finito Deus tanto mais ao alcance da razão humana? Realmente, não. O Deus das Escrituras só pode ser conhecido por aqueles a quem Ele próprio Se dá a conhecer.

Tampouco o intelecto pode conhecer a Deus. “Deus é espírito...”(João 4.24) e, portanto, só pode ser conhecido espiritualmente. No entanto, o homem decaído não é espiritual; é carnal. Esta morto para tudo o que é espiritual. A menos que nasça de novo, que seja trazido sobrenaturalmente da morte para vida, miraculosamente transferido das trevas para a luz, não pode sequer ver as coisas de Deus (João 3.3), e muito menos entendê-las (1 Coríntios 2.14). É mister que o Espírito Santo brilhe em nossos corações (não no intelecto) para dar-nos o “...conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo”(2 Coríntios 4.6). E até mesmo esse conhecimento espiritual é apenas fragmentário. A alma regenerada terá de crescer na graça e o conhecimento do Senhor Jesus (2 Pedro 3.18).

A nossa oração e finalidade como cristãos deve ser que possamos “...andar dignamente diante do Senhor, agradando-lhe em tudo, frutificando em toda boa obra, e crescendo no conhecimento de Deus”(Colossenses 1.10).
A. W. Pink

2 comentários:

Roberto Vargas Jr. disse...

Olá, meu caro Danilo.

Excelente artigo de A.W. Pink!
O conhecimento de Deus gera, necessariamente, como neste texto, louvor!
Apenas um comentário a adicionar: "É mister que o Espírito Santo brilhe em nossos corações (não no intelecto) para dar-nos o '...conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo'(2 Coríntios 4.6)". Sei que ele se refere aqui à necessidade do "nascer de novo" para o "conhecimento de Deus". Não há o que se discordar neste sentido (como poderia?). Mas o termo "coração" significa, no contexto bíblico, a totalidade do ser do homem. Isto inclui também o intelecto. O homem não necessita ser nem será redimido apenas em parte para que conheça Deus. Ele será redimido corpo, alma e espírito, razão emoção e vontade, todo ele. Só assim seu coração se volta a sua Origem Eterna!
Eu apenas achei que ele exagerou na dose, extrapolando em um quase antiintelectualismo, ao combater corretamente a eficácia da teologia natural para o conhecimento salvífico e a compreensão do Deus que Se revela nas Escrituras!
No amor do Senhor,
Roberto

Danilo Neves disse...

Concordo totalmente com o comentário do irmão. Senti-me tentado em não publicar essa parte do texto do Pink, Roberto. A aversão ao intelectual (que o Sproul chama de Fideísmo) é um pecado (desobedece 1Pe 3.14-16) e tem produzido uma geração de cristãos despreparados para fazer objeções as diversas e variadas filosofias místicas, naturalistas, existencialistas etc. A igreja aprendeu a ficar com a sua fé desprotegida no campo de batalha do intelecto. Apesar do Pink dizer "(não o intelecto)" ele, mais abaixo, cita 2Pe 3.18 e Cl 1.10 e assim não fica tão difícil ler todo o texto. É bom nos lembrandos tb que eu viveu numa época onde o liberalismo teológico arrazava com a ortodoxia dos reformadores.

Abç, irmão Roberto.
Graça e paz, em Jesus, o Filho de Deus. Amém!